Confessionário

Junto as mãos, fecho os olhos, abro os lábios da alma…

Vou lhe contar um segredo, só não sei se pedirei perdão. Guardei-me apertada em cintas, amarrada em cordas, trancada em gestos medidos, pequenos, contidos pra me conter. Mas ainda estou aqui, nunca sequer me retirei.

Tenho uma fome e um medo que me atordoam e tenho olhos debaixo dos olhos que rezo pra não os verem, rezo pra não os lerem. São feitos de palavras ensinadas pra se calar. E eu calo, disciplinadamente amordaço os meus olhos e lhes calo. Mas por dentro eu não me calo… Fico engolindo eu mesma, pra que eu não me saia. E me devoro e me acabo e torno a surgir. E mais uma vez me devoro, mais uma vez me acabo. Mas eu não me acabo…

Não lhe peço perdão; apenas lhe confesso eu. Tenho eu dentro de mim e eu não me caibo. Mas eu minto que sim, desenho flores, distraio minha fúria, distraio meus desejos, distraio minha entrega, distraio-me tanto até me distrair de mim. E então distraída, enganada, guardo-me apertada em cintas, amarrada em cordas, trancada. Mas continuo aqui, nunca sequer me retire. Algoz de mim. Uma piedosa algoz.

O Semelhante

Fazia tempo que não escrevia por aqui… Chegaram a me questionar se a Mariposa havia voltado para o casulo. Eu respondi que poderia ter sido um voo sem aviso. Uma evolução meteórica! E estaria a bater asas, longe, longe…

Mas não era nada disso não… Era viver. E viver me desorganiza a escrita.

Bom, agora retomo as palavras e registros, e faço começando pelo segundo livro. Li, já faz semanas, o livro de contos O Semelhante de Suzana Cano. Foi por sugestão e por empréstimo.

Pois bem, vamos ao livro.

Suzana Cano é uma autora goiana de quem tomei conhecimento a partir de conversas extremamente agradáveis com um recente amigo, e que, conforme instruída por ele, é uma representante da escrita da geração beatniks.

Periodicamente falando não teria relação não. Pois, em datas, o movimento surge em 50, 60, em região norte americana, entre poetas e romancistas, tendo desdobramentos, inclusive, musicais, e era muito mais que um aglomerado de características de produção literária – era um modelo de vida.

Bem, quanto ao livro, estranhei o primeiro conto me perdendo nas sensações: muito sexo, muitos pensamentos desorganizados, muita víscera. No meio do conto eu perdia o dono dos diálogos. Depois fui me encontrando. O meu humano é bem dotado de caos… Bem ambientado a ele, eu diria. Um desejo constante e crescente somado ao descompasso dos passos, desproporção das ideias. E, então, frases aparentemente absurdas já eram tão próximas, tão íntimas.

Mas além do absurdo (embora intenso seja a palavra mais justa para a situação) encontrei doses de fantástico, e gostei também.

Um conto – que não lembro o nome porque já devolvi o livro – falava sobre um poeta que desejava morrer junto a uma árvore e ter seu corpo como fonte para a planta,  para que, depois de consumido, as pessoas ao comerem os frutos se alimentassem dele, de sua matéria, seu ser. Então, fantasticamente, as pessoas que comeram dos frutos da árvore passaram a se manifestar com poesia, com beleza nos atos…

É pra se pensar…

Bem, eu gostei. E pelo que andei pesquisando há versão virtual do livro.

E a quem não desistiu de acessar o blog, apesar de meu afastamento da escrita nesse período, aviso que permaneço no casulo, desenvolvendo asas…

É só questão de registar. Perdoem a falha… É que ventou forte…

Um beijo da Mariposa, e até!

 

Música do momento e escrita

Fui apresentada a essa música já tem um tempo.
Linda.
Linda.
Eis a música : Vida de Artista.

Agora eu escrevo:
Nem artista, nem poeta, nem contista, romancista. Nem romanceada.
Nem romance.
Nem a beleza da lua na noite passada, nem da lua de hoje, nem do ceu sem lua… Nem ceu de noite e nem ceu de dia.
Feita de nem para uma indefinição sangrada e de um sempre e agonizante quase.
E vou sentindo os tombos das cambalhotas de tanto nem e de tudo quase.

Lições

Algumas coisas o tempo ensina.

Ensina que é preciso cuidado. É preciso cuidado no que se faz e não se faz. Coração quebra… Coração cansa, coração tem seus medos. Coração é coisa estranha. Nunca sabe, mesmo a saber.

Tenho a vontade de escrever e tenho as linhas. Mas costura-se em mim uma fadiga funda. Fadiga de domingo tarde, feriado pra dormir, dia de esquecer mundo, esquecer tudo. Sinto uma fadiga instantânea de tudo que já vivi. Me voltam anos e anos do tudo que já vivi… Vendo, sou puro cansaço.

Algumas coisas o tempo ensina.

Ensina a respeitar e deixar quieto. Ensina as formas de abandono. Ensina a olhar o horizonte, respirar fundo, e ir.

O tempo ensina a ir, assim, com cuidado. Por cuidado com o que se faz e não se faz, e então se vai.

E eu vou. O tempo me ensinou seguir.

Conto para uma noite sem dor

Seria envelhecer? Talvez, tempo. Somente tempo? Isso, concluiu – era o tempo.

Era pra ser febre, mas preferiu tratar-se com saquê. Esquenta, dizem. Remédio pra gripe faz suar, deve dar no mesmo. Um gole de saquê, uma lembrança; uma lembrança, um tropeção; um tropeção, uma queda?

Não seria um salto? Não… Eram quedas e quedas, como acompanhar um rio descendo a montanha, suas águas todas e as pedras. Mas rio quando desce busca sua imensidão. A água tem que romper caminhos, juntar-se a outras, alargar margens até alcançar o mar. E é o que ela fez.

Rolou sobre si mesma esses anos todos. Trombou-se consigo, trombou-se com os outros, trombou-se com ilusões, trombou-se com mentiras, trombou-se com verdades. E ainda experimentou as dores de simplesmente trombar com tudo isso sem o pronome se.

Experimentou sensações. Sensações deveriam ter algo a lhe dizer…

Ontem, enquanto cruzava a rua, uma flor isolada no barulho e respirando fuligem me disse sobre colorir. Uma flor isolada, asfixiada pela fuligem me disse sobre colorir! As sensações não teriam nada a lhe dizer? Teriam sim. O que existe sempre diz.

Então fez nascer sensações. Fez, curiosa; só para ouvi-las.

Muito a perceber, escuta ainda… Enquanto percorre seu caminho desde a fonte até a amplidão.

Pensava tudo isso, nos marcados do relógio, ali, no medicar-se com o saquê. Seria envelhecer ou só o tempo? Talvez algo entre um e outro. Acho mesmo que nenhum dos dois.

Não sei…

Assim, feito ela, não sei.

Por sermos uma só?

Não… Não sei.

Reconstrução

Estilhaçou-se nas palmas de minhas mãos uma estrela brilhante de cristal. Nelas, cacos, cortantes, me arranharam a pele, fizeram sangrar.

Desfiz-me dos cacos da estrela guardada. Tornei a olhar minhas mãos.

Sem o enfeite minhas linhas se pronunciaram, vi a sorte na minha mão, todos os passos, os caminhos dentro dos caminhos, o risco de sangue também.

No fim, desenhou-se uma estrela.

Já não era um enfeite, naturalmente estava em mim.